Uma homenagem a Steve Albini. Escolhemos 10 discos gravados por ele, que odiava ser chamado de produtor e, mesmo sem querer, tornou-se um ícone do rock.
Por Elvis Martuchelli e Fagner Ramos
Sempre que ouço qualquer trabalho produzido por Steve Albini, algumas coisas me chamam muita atenção. A primeira é a aspereza do som. Mesmo que a palavra “áspero” possa soar como um adjetivo não muito agradável, nos trabalhos de Albini ela se traduz no timbre das guitarras, o que, nesse caso, é um elogio. O segundo ponto é a “cozinha” de baixo e bateria. Poucos captaram tão bem o som de uma bateria – digna de martelar sua cabeça – quanto Albini (talvez Jimmy Page o tenha inspirado nesse quesito). E o baixo? Os melhores timbres de baixo do rock “sujo” estão eternizados nos trabalhos desse recorder man, que detestava ser chamado de produtor. Nos meus momentos de querer ser um rockstar e tocar o instrumento de quatro cordas, eu chegava aos estúdios e dizia que queria que o meu baixo soasse como nos trabalhos de Steve Albini. Claro, muitos nem sabiam quem ele era; e os que sabiam, não conseguiam sequer emular aquele som característico.

Essa introdução longuíssima é para homenagear, ainda que tardiamente, o mestre Steve Albini, que nos deixou em 7 de maio de 2024, vítima de um ataque cardíaco inesperado. Ele se tornou uma das figuras mais importantes do rock alternativo e do rock em geral, redefinindo o estilo como poucos nos anos de 1980 e 1990, além de gravar artistas do mais alto calibre, como Page & Plant, do Led Zeppelin, a qualquer banda que tivesse a possibilidade de entrar em contato e agendar horas em seu estúdio, o Electrical Audio.
Steve Frank Albini nasceu em 7 de maio de 1962, na Califórnia, e morou em várias regiões dos Estados Unidos (EUA) até se fixar em Chicago, cidade onde viveu até seus últimos dias.
Fã de Ramones, Sex Pistols, Pere Ubu, Devo e de toda a cena punk que surgia nos Estados Unidos e na Inglaterra, decidiu começar a tocar baixo e tocar em bandas nos locais em que morava. Formou-se em jornalismo na tradicional Medill School of Journalism, escreveu para fanzines e revistas especializadas, mas logo cruzou para o outro lado: o do palco, do estúdio e dos instrumentos. Albini formou bandas importantes do cenário independente americano, como o Big Black (1981–1987), que incluía integrantes de outra banda relevante, o Naked Raygun; o Rapeman, que existiu por dois anos (1987–1989); e sua banda mais importante e duradoura, o Shellac, que esteve ativa de 1989 até 2024.

Nos anos 1980, além de sua carreira no rock, Steve Albini começou a se envolver na parte técnica, tornando-se engenheiro musical. Passou a gravar diversas bandas, sempre rejeitando o rótulo de produtor musical. Segundo ele, sua função era transmitir exatamente o que a banda era ao vivo e como queria soar, nunca impondo suas vontades.
Albini jamais aceitou royalties pelos discos que gravava – prática comum entre produtores – e cobrava apenas o valor fechado pela gravação de um álbum. Para se ter uma ideia, no In Utero, do Nirvana, trabalho pelo qual foi responsável por fazer a banda de Kurt Cobain soar mais “suja” e que é considerado pela crítica e por parte dos fãs como o melhor do grupo de Seattle, ele cobrou 100 mil dólares e nada mais.

Em sua carreira como o “cara” do estúdio, Albini gravou bandas como Nirvana, Urge Overkill, Slint, The Breeders, The Jesus Lizard, Superchunk, Fugazi, PJ Harvey, Pixies, Guided By Voices, Veruca Salt, Page & Plant, entre uma infinidade de outros artistas.
Albini era multifacetado. Além da música, escrevia sobre culinária e era um exímio jogador de pôquer, participando de competições. Inclusive, conquistou prêmios consideráveis em dinheiro no World Series of Poker, algo que mais tarde admitiu ter ajudado em seu sustento em determinados momentos.
Sua história com certeza daria um livro de centenas de páginas – e provavelmente isso acontecerá um dia. Porém, não me cabe aqui dissecar toda sua vida, teorias e técnicas de gravação, aspirações pessoais e afins. Nesta homenagem, convidei meu amigo de longa data, Elvis Martuchelli, para selecionarmos cinco discos gravados por Albini que marcaram nossas vidas de alguma forma. Vamos lá, começando pelo Elvis, vulgo Zé Ovo.
Escolhas do Elvis
Superchunk – No Pocky for Kitty (1991)
Talvez não seja o melhor álbum da banda (embora isso seja relativo) nem a melhor produção de Steve Albini, mas a junção das melodias punk do Superchunk com a crueza que caracteriza o trabalho de Albini – aquele baixo distorcido em Tower, rs – certamente resultou em clássicos que hoje fariam parte de um best of da banda.
Se puder ouça: Cast Iron, Tower, Punch me harder e Throwing Things
Breeders – Pod (1990)
Na minha opinião, este disco definiu o que seria o Breeders. O experimentalismo, ou a falta de compromisso em ser pop, ao mesmo tempo que é pop sem ser forçado, isso graças ao extraordinário vocal da Kim Deal, mais a estrutura musical de suas canções. O som de isqueiro em Happiness Is a Warm Gun (Beatles) viria a ser o apito em Cannonball anos depois. A banda que se permitia experimentar e um produtor que não podava as ideias.
Se puder ouça: Hapiness is a warm gun, Doe e Hellbound.
Shellac – 1000 hurts (2000)
“Prayer to God” começa com um spoken word que descreve o que acho ser as especificações técnicas de áudio e o catálogo do disco, sendo sucedido pela guitarra “arenosa”, característica do timbre do Albini. O som da caixa que vem depois é algo raivoso e tribal, que te faz querer pegar um par de baquetas e golpear alguma coisa junto. 1000 Hurts deve estar entre os três álbuns preferidos de qualquer fã do Shellac; é uma homenagem ao “trabalho” de gravar discos, desde sua capa, que imita a embalagem das fitas Ampex 600 Series.
Se puder ouça: Prayer to God, Squirrel Song, Ghosts, Canaveral e Watch Song.
Mogwai – My Father My King (2001)
Antes de escrever isso aqui, comentei com o Fagner que estava imaginando como seria um disco do Mogwai com o Steve Albini. Pois bem, eles trabalharam juntos, sim. Não é um álbum completo, mas este single/EP se tornou um clássico da banda.
Se puder ouça: My Father My King
Slint – Tweez (1989)
Tweez não é tão famoso quanto o clássico Spiderland, mas me lembra uma época em que ouvi muito Slint e rock torto em geral, pois eu estava de cabeça no Transpor e queria trazer coisas novas para a banda. O disco tem uma sonoridade crua e experimental, bom demais. Para mim, o Shellac tem um pouco de Slint nessa fase do Tweez. Acho curioso também que cada música tem o nome de pessoas; ficava imaginando se seriam amigos, familiares… rs.
Se puder ouça: Ron, Carol, Darlene e Warren.
Eu, Fagner Ramos, que vos escrevo, farei minha lista com os discos que tenho em minha coleção e que foram super importantes na minha adolescência rockeira e em minha formação. Depois desses, conheci tantos outros, inclusive os citados pelo Elvis, e que julgo até melhores que os que citarei aqui, mas estes discos ainda me arrepiam quando os coloco para ouvir.
Pixies – Surfer Rosa (1988)
Os Pixies são uma das bandas da minha vida. Amo o quanto um grupo americano possui quatro integrantes disfuncionais no aspecto beleza, diferentes em estilos, mas cada qual com suas genialidades. Posto isso de lado, Surfer Rosa começa com a síntese do que citei ali no começo do texto: aspereza ao extremo. A bateria de Bone Machine, tocada de um jeito simples por Dave Lovering, é aquilo em que o Albini se especializou em captar e reproduzir em várias de suas gravações. As guitarras de Frank Black e Joey Santiago brilham e ressoam, cada uma com sua particularidade, e o baixo de Kim Deal, amiga de longa data e por toda a vida de Albini, soa com destaque e brilho em todo o disco. Algo não muito citado, mas que merece destaque, é a gravação dos vocais, tanto de Black quanto de Deal. Ambas as vozes soam no ponto certo e muito semelhantes às apresentações ao vivo dos Pixies, com o tom rasgado e agudo de Frank Black ressoando muito bem no disco, e a voz de Kim Deal, única e maravilhosa, uma espécie de anjo regada a muito cigarro e algumas doses de whisky. As vozes de Deal foram gravadas dentro do banheiro do estúdio, pois, segundo Albini, o eco estava bem melhor do que o da sala de gravação.
Ouça – Bone Machine, Broken Face e Where is My Mind?
Nirvana – In Utero (1993)
Neste momento, Albini já havia gravado centenas de bandas, como Superchunk, Breeders, John Spencer Blues Explosion, e o Nirvana era a maior banda de rock do mundo, com um vocalista assustado e atormentado pelo sucesso, com aquela síndrome do impostor, sentimento de culpa pelo sucesso e querendo a todo custo voltar às origens. Foi uma união perfeita, realizada com maestria, livres de pressões para ambos os lados, pelo menos durante as gravações.
Albini captou a raiva e a angústia do Kurt, deixando as guitarras mais simples e próximas às apresentações ao vivo da banda, sem tantos overdubs, e aproveitando ao máximo a capacidade vocal de Cobain. O baixo do Krist ficou na medida: aparece, tem presença, mas talvez seja o mais simples que Albini já gravou. E a bateria? Que timbre de bumbo é esse? Quando você escuta o disco no fone de ouvido, ou no último volume, sente Dave Grohl do seu lado.
Tá certo que até Kurt ficou com medo da radicalidade da gravação e cedeu às pressões da gravadora para amaciar um pouco o disco com Andy Wallace.
Do In utero em diante, Albini deixou de vez de ser o cara que gravava só bandas do rock alternativo. Esse disco foi meu ponto de contato maior com o Nirvana, considerado por mim o melhor trabalho de Kurt e companhia.
Ouça – Serve the Servants, Radio Friendly Unit Shifter e All Apologies
Bush – Razorblade Suitcase (1996)
Depois da morte de Cobain, fiquei procurando bandas para me apegar àquele som agressivo, melancólico, raivoso, e confesso que o Bush, banda britânica, em certo momento, me cativou. O público alternativo raiz odiava a banda, tida como poser demais para ser grunge, pois seu líder era Gavin Rossdale, um galã com caras e bocas demais em seus clipes e apresentações.
O Bush foi, talvez, o último suspiro do grunge, que já havia sido engolido pelo metal e pelo começo do nu metal do Sepultura, o britpop do Oasis e o eletrônico do Prodigy. Talvez tenha sido um dos discos que mais ouvi nos anos 90, e considero um dos melhores trabalhos feitos por Steve Albini com uma banda. Todos os timbres ali soam perfeitos, com destaque para o baixo de Dave Parsons.
O álbum foi gravado no lendário Abbey Road, e Albini já relatou que foi um dos trabalhos em que ele mais dedicou tempo e energia. Razorblade Suitcase vendeu bem nos EUA, um país que recebia melhor a banda do que a Inglaterra, terra natal dos caras, teve vários clipes na MTV e singles muito bem escolhidos, como Greedy Fly, Swallowed e Cold Contagious. Foi odiado pela crítica, que comparou o álbum ao In Utero, mas muito bem recebido pelo público, colocando o nome deles na história do rock.
Ouça – A Tendency To a Start Fires, Distant Voices e Greedy Fly.
Plant & Page – Walking Into Clarksdale (1998)
Quando fiquei sabendo que Plant & Page lançariam um disco gravado por Steve Albini, logo me veio a curiosidade de como o trabalho sairia. Não conseguia imaginar guitarras ásperas e secas aplicadas a Jimmy Page, um guitar hero por excelência. Ao mesmo tempo, ali no estúdio estavam dois caras mestres em timbragem de bateria. E vamos lá: a banda de Plant & Page tinha um puta batera, digno de Grohl e companhia, e que, para mim, foi o que mais chegou perto de John Bonham, o finado Michael Lee.
Esse disco é diferente de tudo que eu já ouvi em trabalhos de Albini, talvez porque, nesse disco, ele foi de fato o cara que estava ali para gravar uma banda tocando praticamente ao vivo. A escolha por Albini se deu por exigência de Plant, que admirava tanto sua música quanto seus trabalhos em estúdio.
O disco é uma evolução de Unledded, uma espécie de acústico e álbum elétrico, com releituras de algumas músicas do Led Zeppelin e que bombou a dupla pelo mundo, inclusive com shows no Brasil em 1996, que tive o privilégio de ver. Walking Into Clarksdale tem um dedo de Albini nos timbres em determinados momentos; você escuta claramente sua marca no álbum, mas, acima de tudo, é um disco de dois caras que certamente o influenciaram pela vida no rock.
É um disco com influências da música árabe que assustou a princípio, mas que foi ficando melhor com o tempo.
Ouça – Shining in the Light, When The World Was Young e Most High.
Shellac – Excellent Italian Greyhound (2007)
Eu iria citar o 1000 Hurts, que o Elvis mencionou ali em cima, mas o Excellent Italian Greyhound me pegou de cheio também, com o mesmo impacto. Ouvir The End of the Radio, faixa 1 do disco de mais de 8 minutos, com a música inteira em 3 notas e variações de noise rock, com o vocal gritado de Albini bradando “Can you hear me now?”, é muito libertador, principalmente se você ouvir o som no talo.
O disco varia entre faixas bem experimentais, com passagens de punk, noise, pós-hardcore e uma pegada leve, mas bem leve, de momentos pop dos anos 60.
O álbum foi gravado nos estúdios Electrical Audio, propriedade de Albini, e masterizado no Abbey Road, lugar onde, pelo jeito, ele se sentia bem, afinal, é Abbey Road.
Ouvir o Shellac, para mim, era uma benção. Um exorcismo de todos os momentos ruins que eu poderia vir a passar. Excellent é um disco perfeito, da primeira à última música. Uma aula de gravação, de timbragem, de como soar rebelde e sem amarras de qualquer indústria.
Ouça – The end of the Radio, Be Prepared e Elephant
Albini foi um dos caras mais íntegros e verdadeiros do rock, ao lado de caras como Ian Mackaye, do Fugazi. Fazia só o que acreditava, e de fato, acreditava naquilo que reproduzia. E nós, enquanto ouvintes e apreciadores, sempre acreditamos em tudo que ele metia a mão.
Can you hear me now?



